quarta-feira, 21 de abril de 2010

Romanceiro da Inconfidência

Edusp : Imprensa Oficial, 2004


De Cecília Meireles


Romanceiro da Inconfidência
Romance LIII ou Das palavras aéreas


Ai, palavras, ai, palavras,
Que estranha potência a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
Sois de vento, ides no vento,
No vento que não retorna,
E, em tão rápida existência,
Tudo se forma e transforma!

Sois de vento, ides no vento,
E quedais, com sorte nova!

Ai, palavras, ai, palavras,
Que estranha potência a vossa!
Todo o sentido da vida
Principia à vossa porta;
O mel do amor cristaliza
Seu perfume em vossa rosa;
Sois o sonho e sois a audácia, calúnia, fúria, derrota...

A liberdade das almas.
Ai! Com letras se elabora...

E dos venenos humanos
Sois a mais fina  retorta:
Frágil, frágil como o vidro
E mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
Pelo vosso impulso rodam...

(...)

Detrás de grossas paredes,
De leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda
Sem peso de ação nem de hora...
_ e estás no bico das penas,
_ e estais na tinta que se molha,
_ e estais nas mãos dos juízes,
_ e sois o ferro que arrocha,
_ e sois barco para o exílio,
_ e sois Moçambique e Angola!

(...)

Ai, palavras, ai, palavras,
Mirai-vos: que sois agora?

(...)

Ai, palavras, ai, palavras,
Que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro de aragem...
_ sois um homem que se enforca!


quarta-feira, 14 de abril de 2010

Mário Quintana

Mário Quintana agradece ter sido o escolhido. É o que me parece ao ver esta fotografia e escolhê-la para ilustrar este post.
Sei que foi difícil escolher, entre tantos poetas, um. Apenas vinte e um leitores votaram e, como todas as estatísticas, é uma simples representação, nem sempre corresponde à vontade de todos. Confesso que não fiquei surpresa porque Quintana é muito popular. Cá entre nós, todos têm sua preferência!
Afinal, o poeta tem resposta para quase tudo.


Arte poética


Esses poetas que tudo dizem
Nada conseguem dizer:
Estão fazendo apenas relatórios...


Mario Quintana; Velório sem defunto, 1990

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Murilo Mendes





O Visionário
Eu vi os anjos nas cidades claras,
Nas brancas praças do país do sol.
Eu vi os anjos no meio-dia intenso.
Na nuvem indecisa e na onda sensual.

À meia-noite convoquei fantasmas,
Corri igrejas de cidades mortas,
Esperei a dama de veludo negro,
Esperei a sonâmbula da visão da ópera.

Na manhã aberta é que vi os fantasmas
Arrastando espadas nos ladejos frios:
Ao microfone eles soltavam pragas.
Vi o carrasco do faminto, do órfão,

Deslizando, soberbo, na carruagem.
O que renegou a Deus na maldição,
Vi o espírito mau nas ruas,
Cortando os ares com seu gládio de sangue.

Vi o recém-nascido asfixiado
Por seus irmãos, à luz crua do sol.
Vi atirarem ao mar sacos de trigo
E no cais um homem a morrer de inanição.

À luz do dia foi que vi fantasmas,
Nas vastas praças do país do amor,
E também anjos no meio-dia intenso,
Que me consolam da visão do mal.

Murilo Mendes.  As Metamorfoses.

domingo, 4 de abril de 2010

Páscoa


As espigas de Aninha

A estrada da vida
pode ser longa e áspera.
Faça-a mais longa e suave.
Caminhando e cantando
com as mãos cheias de sementes.

A um jovem distante
o Pai deu uma gleba de terra,
e disse: trabalha, produz.
Era no tempo e ele plantou...
E me mandou no tempo quatro espigas de sua planta,
enfeitadas com os selos caros do correio.

Como o Leitor receberia este presente?

Era abril na minha cidade.
Páscoa.
Sempre, abril é Páscoa.
Recebi as espigas resguardadas em meia palha dourada,
símbolo de um trabalho fecundo.

Preparando sua terra
plantando e produzindo,
ele estava esquecendo angústias
do presente
e enchendo a tulha do futuro.

Eu o abençoei de longe
com a ternura dos meus cabelos brancos.

Cora Coralina

em 
Vintém de Cobre, meias confissões de Aninha, Editora da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1987
Fonte: Para ser zen